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quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sobre a Natureza da Ciência

Por via das dúvidas, resolvi postar a entrevista dada ao repórter da Folha de São Paulo, Ricardo Bonalume Neto no mês passado. Como o tema é mais delicado do que o da postagem anterior, achei por bem publicar a íntegra das respostas e perguntas.

1. Por que a origem da ciência moderna costuma estar vinculada à Revolução Científica do século 17? Por que o que veio antes, ou o que se fazia fora da Europa, não merece ser chamado de “ciência”?

- Na verdade, o marco fundamental é Nicolau Copérnico, que nasceu em 1473 e fez uma contribuição pouquíssimo conhecida em sua época. O que ele fez, na verdade, foi se livrar de certas amarras que vinham desde o Egito e a Grécia, e se dispôs a explicar o mundo sem compromissos com a religião. Os astros deixaram de ser vistos como divindades caprichosas, a Bíblia deixou de ser vista como o guia único do pensamento, enfim, ele ousou afirmar que a Terra se move em torno do Sol, mesmo se isso contrariava as escrituras, que afirmam que o profeta Josué mandou parar o Sol, e não a Terra. Galileu, quase 100 anos depois, conheceu e compreendeu a obra de Copérnico, e passou a produzir novos conhecimentos com os mesmos princípios e o resultado foi uma verdadeira explosão de conhecimento. Não só novos fatos, mas novas formas de produzir conhecimento são geradas continuamente. O desenvolvimento dos meios de produção passou a depender fundamentalmente dessa nova forma de produzir conhecimento, que se costuma chamar ciência moderna. No mundo antigo se produzia conhecimento, que pode ser chamado ciência, mas estamos falando de outras formas de produzir conhecimento. Paulo Abrantes [filósofo da ciência da UnB], cuja obra é muito importante, mostra que a distinção não era total, mas em essência, estamos falando de algo diferente.

2. Fazer ciência é aplicar o método científico _juntar evidências observáveis, realizar experimentos reprodutíveis e mensuráveis_, ou ciência, uma atividade humana como outra qualquer, é “aquilo que os cientistas fazem”?

“Aquilo que os cientistas fazem” é uma forma pouco feliz de definir ciência. Tautologias à parte, ela é uma expressão de certo preconceito contra a ciência, como se ela fosse uma simples manifestação cultural ou tecnológica, tal qual uma prática religiosa ou técnica, como uma seita fechada que se autodefine arbitrariamente, ou, como você mesmo disse “uma atividade humana como outra qualquer”. Há um erro formal aqui. Galileu não conheceu Copérnico nem Newton – viveram em épocas diferentes - mas os três trabalharam juntos, no sentido que compartilharam princípios e métodos. Quando Newton dizia ter enxergado longe por ter subido no ombro de gigantes, ele não estava apenas espicaçando Leibnitz (que tinha baixa estatura), mas havia alguma sinceridade ali. Ele ajudou a aperfeiçoar uma forma de criar conhecimento que tinha sido inventada antes dele. Essa é a ciência moderna, uma atividade humana, sem dúvida (no que há de bom e mau nisso), mas que está longe de ser como outra qualquer. Observe qualquer religião e compare o quanto ela mudou nos últimos dez anos. Compare essa mudança (se achar alguma) com as mudanças de qualquer área da ciência. A diferença certamente será brutal, e isso mostra que a ciência está longe de ser uma atividade como outra qualquer.

3.Cientistas costumam ser criticados por manipularem a natureza, ou criarem mais problemas do que soluções _como é o caso na opinião de muitos, por exemplo, da energia nuclear ou das culturas transgênicas. Há validade nesse tipo de crítica, ou trata-se de obscurantismo?

A crítica é válida, mas, para ser justa, não pode se restringir aos cientistas. Os juízes tomam decisões que nos afetam e que afetam a natureza; eles permitem queimadas, garantem a propriedade privada de matas e corpos d’água, colocam na cadeia quem questiona a propriedade privada ou a atividade econômica não sustentável. Os políticos fazem leis que amparam essa forma de organização social e econômica, o aparelho de estado possui milhares de ocupações que chancelam as mais variadas agressões à natureza, os religiosos abençoam exércitos, máquinas de guerra e bombas, produzidos por indústrias que geram empregos, os quais, ao fim e ao cabo, todos querem. É verdade que os cientistas então quer no aparelho de estado, quer junto aos meios de produção, mas não podem ser apontados como bodes expiratórios, capazes de carregar para longe nossos problemas, assim como também não têm o poder de provocar todo o mal do mundo. A dialética da ciência a leva a produzir ao mesmo tempo venenos e antídotos, mas a sociedade é que decide o quanto de cada um deles deve ser usado. O uso da bomba atômica, malgrado a tragédia que a envolveu, contou com aprovação popular, pelo menos nos Estados Unidos, não nos esqueçamos disso. O mesmo pode ser dito das fogueiras da Inquisição e de tantos outros momentos da história dos quais não nos orgulhamos e que não queremos ver repetidos – muitos dos quais nada tiveram a ver com a ciência ou com os cientistas.

4. Qual, na sua opinião, o principal problema do ensino da ciência no país, tanto no ensino fundamental, como na universidade?

Creio que o principal problema seja o de não reconhecer a especificidade do objeto da disciplina, como se fosse uma apenas uma forma chata de literatura. Ladainhas de termos técnicos são por vezes apresentados aos estudantes, que nenhum sentido conseguem ver naquilo, além de uma literatura pobre, uma poética tosca. Estudar ciência significa muito menos memorizar fatos e termos técnicos e muito mais entender como a humanidade se livrou das amarras da escuridão do intelecto. Parafraseando um antigo adágio latino, os cientistas do passado não nos legaram ideias hoje ultrapassadas, mas sim o pensar criativo de seu tempo.

Um comentário:

  1. Historicizar a ciência é muito interessante! E excelente para a sala de aula, já que facilita a interdisciplinaridade

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